Quem é Pai Naldo?
Por volta dos meus seis anos, lembro que o mundo ainda era uma névoa densa, em que nomes, formas e sentidos se confundiam numa espécie de en...
https://www.literaturauneb.com.br/2025/06/quem-e-pai-naldo.html
Por volta dos meus seis anos, lembro que o mundo ainda era uma névoa densa, em que nomes, formas e sentidos se confundiam numa espécie de encantamento cotidiano. A memória não é exata, mas algumas presenças permanecem com uma nitidez que nem o tempo se atreve a apagar. Foi numa dessas manhãs esgarçadas pela infância que vi, pela primeira vez, Pai Naldo.
Ele chegou com passos calmos, como quem não precisa anunciar sua importância. Lembro do olhar acolhedor, das palavras suaves, mas firmes, e do convite para uma festa no barracão. Eu não sabia o que era um orixá, muito menos o que se celebrava naquele lugar. Mas alguma coisa em mim – talvez o corpo, talvez a alma – respondeu antes do pensamento: era ali que eu queria estar. Havia algo de misteriosamente familiar em tudo aquilo, como se uma parte minha já pertencesse àquele espaço, àquela fé, àquele homem.
As festas do barracão coincidiram com as saídas de minha mãe ao bar do Vaninho. Íamos com ela, mas ela logo nos perguntava: “Querem ficar comigo ou ir pra festa?” Escolhíamos sempre a festa. Lembro especialmente da quitanda de Erê: os atabaques, os movimentos, a força que vibrava no ar e que, de alguma forma, se aninhava dentro de mim. Não era apenas curiosidade infantil – era reconhecimento. Um reencontro. Como se eu estivesse voltando, não indo pela primeira vez.
A cada despedida, a mesma tristeza. Queria ficar. Queria que aquilo não terminasse. Hoje, entendo que o que me tocava era mais do que a música ou os ritos – era o que escapava deles. Era o sagrado, escorrendo pelas frestas da infância.
Mais de três décadas depois, voltei a esse espaço – desta vez, com gravador e caderno nas mãos. Não mais o menino curioso, mas o jornalista, o letrólogo, o homem que atravessou a vida sem nunca ter se desvinculado daquele chamado inicial. Diante de mim, novamente, estava ele: Pai Naldo. Mas quem é, afinal, Pai Naldo?
Essa pergunta me perseguia desde que decidimos gravar um documentário e escrever sua biografia. Eu e o professor José Fagner fomos recebidos por ele com a mesma simplicidade e afeto de outrora. Nos levou ao quarto de jogo. Sentou-se. Olhou nos nossos olhos. “O que vocês querem saber?”, perguntou, sem rodeios.
Disse que queríamos contar sua história. Ele assentiu com brilho nos olhos. “É meu maior sonho.” Perguntei quando poderíamos começar. Ele sorriu: “Agora”.
Nascido Adnaldo Pereira dos Santos, caçula de uma família de Ipiaú, ele teve uma infância que não cabe nos clichês da leveza. “Minha infância foi de doença”, disse, sem melancolia. “Eu ficava todo aleijado no berço. Retorcido. Todo encolhido.” Sua mãe, Valdelice, hoje com 101 anos, assistia tudo sem respostas. Havia sempre alguém de sentinela, esperando que ele morresse. Mas havia também quem visse além.
Dona Dalina foi uma dessas pessoas. “Ela dizia: ‘Isso aí não vai morrer não. Vai ser curador.’” Hoje, toda a família dela está no barracão, sob sua guia espiritual.
A espiritualidade, no entanto, não foi um caminho facilitado. Cresceu ouvindo sua avó xingar os praticantes de candomblé que passavam em frente à casa. “Chamava de macumbeiros, dizia que estavam todos atrás de homem.” O preconceito era denso, como uma nuvem plantada sobre a casa. Mas sua mãe, aos poucos, foi cedendo. E ele também.
Foi no beco de Neguinho, pai de santo, que o menino doente encontrou o primeiro respiro espiritual. Estava sentado ao sol, tremendo de frio. Neguinho passou e disse: “Ali tem uma mulher. Se tu for lá, ela te ajuda.” Ele foi. Sozinho. Segunda-feira. Nicinha curandeira o recebeu preparando um tabuleiro. A espiritualidade se apresentava, não com trovões, mas com pequenos gestos e acolhimento.
A doença foi passando. A mediunidade crescendo. O menino foi virando guia. O guia foi se tornando Pai.
A trajetória de Pai Naldo não é reta, nem pura. Como todo líder, ele precisou lidar com a imperfeição humana. Cometeu erros, enfrentou dilemas, sentiu o peso da influência que carregava. A mudança de nação – de filho de Oxumarê a Angorô – não foi apenas ritualística: foi também política, social, pessoal.
Ele não virou Pai Naldo apenas por iniciação religiosa. Tornou-se pela forma como enfrentou as dores alheias, como acolheu, como também se perdeu e se refez. Não há figura mítica sem rachaduras. O que o torna especial é a forma como lidou com elas.
Hoje, seu nome ressoa como símbolo de resistência e fé. Mas a grandeza não está apenas no mito. Está no homem. No filho, no curador, no líder, no encolhido do berço, no menino que tremia ao sol. A história de Pai Naldo não é só a dele – é a de muitos. E, num ponto mais íntimo, é também a minha.
Volto à pergunta: quem é Pai Naldo?
Talvez nunca saibamos por inteiro. Mas algumas histórias não são feitas para serem encerradas. São feitas para serem contadas, e recontadas. Não com a pretensão da verdade total, mas com o respeito por tudo aquilo que permanece vivo mesmo depois do silêncio.
Como ele mesmo se apresenta:
— Eu sou Pai Naldo, Tatett’u Aidan Sileuá.
E, como todo nome ancestral, esse também carrega um mundo.
Ao chegar, viu a mulher preparando um tabuleiro — e foi ali, entre ervas, cantos e silêncio, que o santo o tomou. A mulher, firme como as raízes de uma árvore antiga, não hesitou: “Esse menino tem problema de santo. Esse menino tem santo. Esse menino precisa ser cuidado.” E o acolheu com a sabedoria de quem reconhece um destino antes mesmo de ele se anunciar. A mãe, porém, envolta numa névoa que parecia dissolver qualquer traço de afeto, não o procurou. “Fiquei lá no terreiro, por perto. Não voltei pra casa naquela noite, nem pela manhã seguinte. E ela... ela não veio. Não veio!”
A voz treme. Uma pausa. O tempo suspenso entre mágoa e lembrança.
“Talvez... talvez a energia não deixasse ela se meter, né?”, diz ele, olhos fixos, como quem procura respostas num tempo que já não fala.
A história segue, vibrante de fé, dor e destino.
“Naquele tempo eu ainda estudava. Minhas professoras — hoje aposentadas — foram à casa da minha mãe. Diziam: ‘Tire seu filho de lá, ele não vai mais ao colégio, aquilo é coisa do cão.’
E minha mãe respondia: ‘Não vou. Quando ele voltar, boto ele pra fora. Mas não me meto. Não vou.’
E não foi.
E eu dei meu primeiro Bori.”
Ao voltar para casa, encontrou a mãe costurando. O saco de pão, que hoje costuma ser de papel, era de tecido. Dentro dele, uma bermuda, uma camiseta.
“Você sujou a família. Vá-se embora”, disse ela.
Ele voltou chorando para o terreiro.
Perguntei sobre o pai.
“Não tenho mais pai. Ele foi embora. Separou-se da minha mãe e sumiu no mundo. Eu tinha quatro anos. Se está vivo ou morto, ninguém sabe. Mas digo direto: meu pai foi embora pra não ser pai de santo. Contam que ele recebia o caboclo Sultão das Matas. Era de Ogum. Ficou louco. E sabe quem cuidou dele?” — olhos firmes sobre os meus. “O pai de Nelson. Nelson, da prefeitura, da Dois de Dezembro, que dirige ambulância.”
— Já ouvi falar, mas não conheço.
— Pois foi ele. O pai dele. Depois disso, meu pai sumiu. O santo dele queria casa, queria terreiro. E dizem que a herança caiu sobre mim.
Ficou. Chorando, mas ficou. A mãe de santo o firmou com um gesto:
— Você vai ficar aqui. Na rua, não.
E ali permaneceu. Aos 17, estava curado. Mas nunca mais voltou à casa da mãe.
“Hoje cuido dela. Pago plano, amo. Ela me ama de um jeito que parece querer compensar o tempo que não cuidou. Mas morar lá? Nunca mais. Do terreiro da minha mãe de santo, fui para o meu terreiro.”
O professor Fagner pergunta:
— “Isso com 8 anos?”
— “Foi. Já fui morar lá.”
Dos oito aos dezessete, sua morada oscilou entre o sagrado e o abandono. Dormiu no terreiro. Dormiu na rua. “Havia uma mulher na Seringueira[1] — não cito o nome.
Chegava faminto. Magro. Ela dizia: ‘Tem roupa pra lavar. Se lavar, ganha comida.’”
Interrompo:
— O senhor morava no terreiro?
— Morava.
— E o que o levou à rua? À fome?
— Às vezes, a mãe de santo viajava. Dois, três meses fora. Ninguém ficava pra cuidar. Tinha que se virar. Lá ia eu pra casa dessa mulher. Lavava uma trouxa de roupa imensa. Começava às sete. Quando dava uma da tarde, ainda não tinha acabado.
Ela trancava a comida no guarda-roupa: ‘Não vou dar agora. Você come, vai embora e não termina.’ Duas, três da tarde. Aí sim, o prato vinha. ‘Se vier amanhã arrumar a casa, tem mais comida.’ E eu aceitava. Por um prato. Assim fui. Sofrendo. Mas tentando.
Até que, um dia, as portas começaram a se abrir. Porque Deus consente... mas não pra sempre.
Respira fundo. O peito parece recordar o peso.
“Foi fácil? Não. Tive tudo pra cair no crime, na droga, no fim. Mas minhas forças...”
Interrompo:
— E o seu barracão? Quando começou a ser o pai Naldo?
— Comecei numa casa alugada. Nem sabia que queria trabalhar. O povo vinha e dizia: ‘Tem um homem com um caboclo. Quero que ele me atenda.’ E eu respondia:
‘Não sou pai de santo. Curador é Neguinho, a velha Nicinha... Eu não.’ Fechava a porta. Mas vinham outros. E outros. “‘Me benze! Só faço se for com você!’
E eu insistia: ‘Não sou curador.’
Mas o caboclo começou a vir. A atender.
Pergunto:
— Isso foi ainda na casa da mãe de santo?
— Não. Já tinha alugado uma casa. Rua Dom Pedro II. Morei na Invasão[2].
— E tinha quantos anos?
— Entre quinze e dezesseis.
— “Uma criança”, murmuro.
E ele continua, como se o tempo não tivesse passado:
— Eu aluguei... fui morar. Quando eu já não aguentava mais o caboclo me pegar — de bermuda mesmo — pra atender o povo... Eu não queria, de jeito nenhum. Mas chegou uma hora que...
Pausa. Os olhos buscam uma palavra que ainda dói.
— ...não tem jeito.
O jornalista José Fagner completa, como quem traduz o que já está dito no corpo:
— Começou a aceitar.
E ele confirma, quase em sussurro:
— Eu comecei a aceitar. Comecei a trabalhar com o santo. E então... começou. Eu nem era raspado ainda. Foi aí que fui pra perto de Porto Seguro, pra uma cidade chamada Jussari. Lá, eu iniciei no santo. E tudo melhorou. Foi ali que tudo começou a melhorar de verdade.
Ele lembra da mulher que o guiou:
— Aquela mãe de santo... ela ajudou muito. Tanto que... eu morava com um homem, pai pequeno do terreiro. E no dia em que raspei o santo, ela me alugou uma casa.
Pergunto, com cuidado:
— Essa transição, pai Naldo... O senhor alugou uma casa ali pelos quinze, dezesseis anos. Mas como foi que chegou a Jussari? Já conhecia?
Antes que eu terminasse a pergunta, ele já estava respondendo:
— Essa mãe de santo veio morar em frente à nossa casa. O povo daqui começou a ir fazer o santo com ela, porque aqui era difícil raspar naquela época. Tenho 45 anos de raspado. Era raro. E ela levou um rapaz... que tinha saído daquela casa... e ele foi onde se raspava. Aí levou umas vinte pessoas de Ipiaú. Em épocas diferentes. Foi lá que fiz meu santo.
Ele sorri, como se aquela memória ainda aquecesse seu peito:
— Quando fiz o santo... tudo mudou. Tudo começou a clarear.
Aproveito a curva da memória e pergunto:
— E aquela história de que o senhor vendia leite... foi quando?
Ele responde sem hesitar:
— Eu morava no Honório, doente. Vendia pra Raimundo Teixeira.
— Era nessa época que o senhor ainda morava com sua mãe? — pergunto, e ele responde junto comigo, como se adivinhasse o que viria.
— Morava com minha mãe, sim.
Fagner pergunta:
— Com a sua mãe ou com a mãe de santo?
— Com a minha mãe. Depois é que saí. Aí fui pro terreiro, e ali fiquei. Mas com uns nove, dez anos, eu já vendia leite. Vendia acarajé também, em Itagibá — disse com a naturalidade de quem já viu demais.
Eu o interrompo, impressionado:
— Tudo isso quando o senhor ainda era uma criança?
Fagner murmura, quase para si:
— Muito intenso.
E Pai Naldo confirma, olhando nos nossos olhos:
— Muito intenso, muito rápido. E tudo... criança. Eu não tive infância. A infância foi o santo.
Há uma pausa. Ele respira, como quem busca reorganizar os móveis de dentro.
— Depois que raspei, quando aluguei minha casa e comecei a atender, minha mãe se tornou uma santa na minha vida. Não que não fosse antes. Mas aí... começou a me aceitar.
— Ela o acolheu, então — comento, com delicadeza.
— Eu fui excluído da família — diz ele, com firmeza serena. — Muito preconceito. E eu já tinha uns traços... o povo percebia. Já diziam que eu ia ser gay. E a família... a família é cruel.
Os olhos dele se perdem por um instante. A voz cai para um lugar mais escuro.
— Os homens mais novos da família... quando eu chegava, me chamavam no quarto. E lá, me sacudiam. Diziam: “Deixa de ser viado.”
O silêncio que segue parece ter a textura de um chão gelado.
Quando volta a falar, a voz é mais baixa, mas não menos firme:
— Era assim... a família.
Quero entender o que mais pesava nessa rejeição. Pergunto com cuidado:
— O senhor acha que foi mais por conta da sua orientação sexual?
Ele apenas move a cabeça, um gesto curto, mas claro.
— E o Candomblé? Também teve peso?
Ele respira fundo. A emoção engasga um pouco a fala. Mas segue, encarnando uma voz antiga:
— “Você tá pensando que curador é alguma coisa?” — imita o tom áspero de outrora.
— Curador... é uma sandália de Havaiana. Uma preta. Outra azul. E um prego no meio.
Fica em silêncio por um momento. A lembrança parece ainda doer.
Depois olha para nós e conclui, com a serenidade de quem sobreviveu:
— Todos... noventa por cento da família.
Mas então, quase como quem ergue uma vela no escuro, diz:
— Hoje, já ajudei muito essa família. E ainda ajudo. Eu não tenho ódio.
Não carrego revolta. Não guardo mágoa.
Ele se ajeita na cadeira. E com a fé de quem sempre seguiu adiante, murmura:
— Eu busco... um amanhã melhor. Pra mim. E para as pessoas.
A história de Pai Naldo se entranha nas margens de um Brasil que ainda resiste em aceitar o que é diferente. O que se revela em sua fala — entre pausas, silêncios e lembranças — é mais do que uma biografia individual. É o retrato de uma realidade dolorosamente coletiva: a exclusão de pessoas LGBTQIA+ e de religiões de matriz africana, sobretudo quando ambas as identidades se cruzam no mesmo corpo.
Desde cedo, Naldo percebeu que algo em si provocava desconforto nos outros. Seus traços, seu modo de falar, talvez o modo de olhar ou de existir — tudo isso já parecia denunciar o que a sociedade insiste em classificar como “desvio”. Antes mesmo que ele se afirmasse como homossexual, já era lido como tal. E, por isso, julgado. Condenado. Corrigido à força.
O relato que nos entrega é duro. Os homens da própria família o chamavam ao quarto para, sob a justificativa de "ensinar a ser homem", agredi-lo. Não há metáfora possível que suavize esse gesto. Essa violência, naturalizada dentro do ambiente que deveria protegê-lo, mostra como a homofobia não é apenas um discurso de ódio — é um instrumento de controle físico, simbólico e emocional. A infância de Pai Naldo foi marcada por essas tentativas de “correção”, onde o afeto se perdia no punho cerrado e na ordem de apagar-se: “Deixa de ser viado”.
Mas essa rejeição familiar não se limitou à sua sexualidade. Também atravessou sua espiritualidade. Ao se aproximar do Candomblé, ouviu de familiares que ser “curador” era como ser uma sandália velha — uma preta, outra azul — com um prego enfiado no meio. Metáforas que escarnecem do sagrado, zombam da fé e reduzem os orixás à poeira. Era mais do que ignorância: era racismo religioso, uma das faces mais silenciosas e perversas do preconceito estrutural brasileiro.
Esse duplo apagamento — por ser quem é e por crer como crê — moldou sua trajetória, mas não o definiu. Ao contrário do que se espera de alguém tão ferido, Pai Naldo não se tornou amargo. Ao narrar sua história, não há ressentimento em sua voz. Há lucidez. Há um tipo de sabedoria que só a dor enfrentada com dignidade é capaz de oferecer.
“Eu não tenho mágoa. Não tenho ódio. Não carrego revolta”, ele diz. E, nesse dizer, ensina.
Mesmo tendo sido renegado, ele escolheu amar. Escolheu cuidar. Acolheu. E ainda hoje ajuda parte da família que um dia o machucou. Seu amor não é frágil. Não é superficial. É profundo, ancestral, tecido no axé, nutrido no silêncio dos terreiros, onde os tambores curam o que o mundo insiste em ferir.
A trajetória de Pai Naldo nos desafia a olhar para o Brasil real — aquele em que meninos são expulsos de casa por serem quem são, e em que sacerdotes são ridicularizados por se dedicarem a uma fé não-hegemônica. Sua vida é uma resposta à intolerância. Sua existência, um ato político. Sua espiritualidade, um refúgio que virou resistência.
Ao afirmar que busca “um amanhã melhor, pra mim e pras pessoas”, ele não pede apenas um futuro — ele o planta, dia após dia, com cada gesto de cuidado, cada iniciação, cada roda, cada palavra dita com firmeza e amor. Pai Naldo é, ao mesmo tempo, memória e semente.
— E na família, o senhor é o único do axé?
Pai Naldo responde sem hesitar, como quem já respondeu essa pergunta antes, muitas vezes:
— Tenho uma sobrinha que é raspada. E outra que está apontada, suspensa pro cargo da casa. Ela é pedagoga, professora... Mas só elas. Mais ninguém.
A conversa então se move, como quem busca a origem das coisas.
— E quando nasceu esse barracão aqui?
Ele para. O olhar vai longe, como se precisasse atravessar o tempo para encontrar a resposta.
— Esse barracão... eu saía perguntando ao povo: “Quanto é esse terreno?” Não lembro bem o dinheiro da época... se era vinte conto, se era vinte mil...
— O senhor se lembra o ano? — insisto.
— Eu tinha vinte anos.
Arrisco:
— Era mil novecentos e noventa... e alguma coisa?
Ele faz as contas mentalmente, como quem repassa a própria idade:
— Eu tenho sessenta... vou fazer sessenta e um...
Fagner tenta ajudar:
— Então foi por volta dos anos 80?
— Sim — confirma ele. — Foi por aí.
E então, a história se desenrola como um novelo:
— Eu perguntava: “Quanto é esse terreno?” Diziam: “É um milhão.” E eu pensava... “Nunca vou ter um barracão. Nunca vou ter uma casa.”
Mas a vida, às vezes, dá voltas inesperadas.
— Eu morava de aluguel. Em frente, outra casa alugada. Chegou uma família de São Paulo, lutando pra sobreviver em Ipiaú. Um dia, saí pra dar bom dia, boa tarde... aquela coisa. Vi a dona da casa chorando. Perguntei: “Por que a senhora chora?” Ela disse: “Minha filha está grávida. Meu marido foi trabalhar e, quando voltar, não quer mais ela dentro de casa.”
Ele faz uma pausa. A lembrança ainda parece viva.
— Eu disse: “Arruma a sacola dela.” E ela arrumou. As roupinhas, numa sacolinha. Porta com porta, trouxe a menina pra minha casa. E ela pariu dentro da minha casa. Teve neném ali mesmo. Vieram do Guarujá.
Então, quando o marido voltou, houve tensão. Mas Pai Naldo, com palavras e paciência, apaziguou o conflito.
— No fim, eles decidiram voltar pra São Paulo. Me disseram: “Pai Naldo, a gente vê sua luta... querendo comprar casa, terreno... Vamos lhe ajudar. A gente também não tem casa lá, vamos pra casa de uma filha, começar de novo. Mas o senhor tem como crescer em São Paulo, pelo que o senhor é. Vamos levar o senhor.”
E ele foi. Onze meses.
— Quando voltei, trouxe dinheiro suficiente pra comprar dois terrenos. Só dois. Comprei. Voltei. Já tinha filhos de santo em São Paulo. Já tinha nome. Vim, comprei, construí o barracão em madeira. Depois voltei de novo.
E Ipiaú começou, finalmente, a lhe dar credibilidade.
Pergunto:
— Até então o senhor atendia onde morava?
— Numa casa de aluguel.
— E esse é o seu primeiro barracão?
— Era um barracão de aluguel. Antes disso, toquei em quatro, cinco casas diferentes. Aí inaugurei esse aqui, e tudo começou a crescer. Mas veja... você também precisa fazer por onde. Tudo o que quiser ser, seja com honestidade. Quando alguém vê um homossexual vindo, se for estudado, diz: “Ali vem um homossexual.” Se não tiver postura, estudo, trabalho... “Vem um viadinho.”
Ele faz uma pausa, respira fundo.
— Eu, por exemplo. Tenho dois nomes que o povo usa pra diminuir: “viadinho” e “macumbeiro”. Mas nenhum desses me cabe. Por isso, me chamam de Pai Naldo. E tem gente que ainda diz: “Mentira, que ele nem é homossexual...”
Fagner sorri, incrédulo:
— Meu Deus... o povo, quando não tem o que falar, inventa...
Pai Naldo assente:
— A vida é assim. E eu tenho uma longa história. Quem você imaginar como exemplo... eu já fui.
Aproveito a deixa:
— O senhor mudou de corrente, não foi?
— No santo?
— Sim. À medida que suas mães de santo foram mudando. Mas quando o senhor começou, era o quê?
— Quando comecei, não era como é hoje. Era um Candomblé... um Candomblé em giro de caboclo. Quando a casa não raspa, é isso: um Candomblé brasileiro. Não tinha banto, nem iorubá. Era a raiz do Brasil. Não era umbanda, mas também não era africanizado. Era um Candomblé nosso.
Ele então conclui, como quem chega ao ponto exato:
— Só depois que eu fiz o santo é que entendi o que era a raiz. Aí sim, conheci o axé. Axé Maria Neném, de Salvador.
O barracão, ou a arquitetura da fé
Quando Pai Naldo fala do início do seu barracão, não há grandiloquência, tampouco orgulho vaidoso. Há, sim, uma memória afetiva e concreta de quem construiu tudo com as próprias mãos — não apenas com cimento e madeira, mas com fé e insistência.
Ele lembra de andar pelas ruas de Ipiaú perguntando quanto custava um terreno. Os valores, confusos na memória — "se era vinte conto, se era um milhão" — não importam tanto quanto o sentimento: “Eu pensava... esse terreno aqui... eu nunca vou ter um barracão.” A frase carrega o peso de quem, desde cedo, foi ensinado a não sonhar.
Mas o destino, como as águas dos rios de Oxum, costuma encontrar brechas para seguir adiante.
Foi em um gesto de cuidado — acolher uma jovem grávida expulsa de casa — que a virada aconteceu. Uma família vinda do Guarujá, sem casa em São Paulo, encontra abrigo em Pai Naldo. A mulher pare no quarto dele, como se a vida se refizesse ali, nas margens do que era possível. Em gratidão, eles o levam para São Paulo. E São Paulo, como tantas vezes acontece, revela-se terra fértil para quem leva o axé como ofício e destino.
Onze meses depois, ele retorna com dinheiro suficiente para comprar dois terrenos. Volta com filhos-de-santo paulistas, com outro olhar sobre si mesmo, com mais coragem. E constrói — primeiro em madeira, depois em tijolo — o que viria a ser seu primeiro barracão. Um espaço onde, enfim, não precisaria mais se esconder ou pedir licença. A casa de orixá torna-se extensão de sua própria existência.
Mas o reconhecimento não veio de imediato. Foi preciso passar por outros quatro ou cinco terreiros alugados, tocar em casas provisórias, resistir ao olhar torto da vizinhança. Até que Ipiaú começa, aos poucos, a lhe dar “credibilidade” — palavra que, na boca de Pai Naldo, soa menos como status e mais como aceitação. Um tipo de pertencimento conquistado com trabalho, honestidade e postura.
Ele diz: “Tudo que você quiser ser, seja honesto. Quando aponta um homossexual de lá pra cá... se você for estudado, ali vem um homossexual. Se você não tiver postura, não tiver estudo, não tiver um trabalho, é ‘vem um viadinho’.”
A fala é dura, mas real. Nela se condensa um aprendizado de sobrevivência: a necessidade de se blindar contra os estigmas com conhecimento, com ética, com excelência. O que deveria ser um direito — ser quem se é — acaba se tornando algo a ser provado, legitimado pelo esforço dobrado que a marginalidade exige.
Entre o caboclo e o orixá: as camadas do Candomblé
Outro momento essencial da fala de Pai Naldo é quando ele explica a transição espiritual vivida ao longo dos anos. No início, sua prática religiosa era aquilo que ele nomeia como “candomblé brasileiro” — um culto de caboclos, marcado pela oralidade, pela força dos encantados, pelos saberes populares e pela ausência de fundamentos africanos sistematizados.
“Quando a casa não raspa, é um candomblé em giro de caboclo”, ele diz. É um candomblé que nasce do cruzamento entre as tradições indígenas, africanas e populares brasileiras. Não é umbanda, tampouco candomblé tradicional — é outra coisa: um entre-lugar, um território de resistência formado nas frestas da opressão, onde o culto sobrevive mesmo sem livros, mesmo sem hierarquia clara, mesmo sem a África formalizada.
Mas, ao ser iniciado no santo — quando “raspa o santo”, como se diz no rito de passagem — ele acessa outra camada da tradição. Conhece a raiz africana. Aprofunda-se. Passa a pertencer ao axé de Maria Neném, de Salvador, uma das casas mais respeitadas do país. É nesse momento que o candomblé deixa de ser apenas sobrevivência e se torna também ancestralidade reconstituída.
Essa distinção é fundamental porque revela o modo como o Candomblé no Brasil é plural, vivo, contraditório — e profundamente marcado por rupturas históricas causadas pelo racismo e pela diáspora forçada. O que se perdeu, muitas vezes foi reinventado. O que resistiu, continua sendo ensinado, corpo a corpo, geração a geração.
Na trajetória de Pai Naldo, portanto, vemos o Candomblé em movimento: de um culto marginalizado e pouco compreendido para uma prática com base, raiz, pertencimento, hierarquia e comunidade. E, ao mesmo tempo, uma espiritualidade que jamais perdeu sua essência de acolhimento — porque foi isso que ele viveu e vive: o santo como abrigo, o axé como casa.
A trajetória de Pai Naldo é, em si, um espelho do próprio percurso do Candomblé no Brasil: nascido da dor do exílio, marcado pela resistência à opressão, forjado na convivência entre diferentes tradições e, ao mesmo tempo, continuamente reinventado pelas mãos e corpos que o sustentam. Assim como a religião que professa, Pai Naldo atravessa fronteiras — de território, de fé, de identidade — para afirmar sua existência em um mundo que tantas vezes o quis silenciar.
Sua história é uma resposta firme à violência que tentou anulá-lo: a violência homofóbica que se instala no quarto da infância sob o pretexto de “correção”; o racismo religioso que zomba de sua fé e reduz seus orixás a estereótipos; a exclusão familiar que não reconhece o valor do afeto que não segue a norma. E, ainda assim, ele permanece. Não como mártir, mas como mestre. Como Pai.
Ao passar de um “candomblé brasileiro” centrado nos caboclos à iniciação no axé tradicional, Pai Naldo também nos revela as camadas da religião que construiu seu chão. Mostra que o Candomblé é múltiplo, vivo, complexo — e que, como toda tradição popular, se reinventa diante das circunstâncias, sem nunca perder sua essência.
E o que seria essa essência, senão o axé? Aquilo que pulsa na vida, no corpo, na fala, na dança, no cuidado com o outro, na hospitalidade, na força que transforma dor em acolhimento. Axé é o que move Pai Naldo a receber uma jovem expulsa de casa. É o que o leva a atravessar estados, construir barracões, formar filhos espirituais, educar pela palavra e pelo exemplo.
Em tempos em que os discursos de ódio voltam a ganhar força e o preconceito insiste em vestir novas roupagens, histórias como a de Pai Naldo são faróis. Elas nos lembram que há outras formas de habitar o mundo — formas baseadas na ancestralidade, no respeito, na comunidade e, sobretudo, no amor.
Porque se ser “viadinho” e “macumbeiro” são os insultos que tentaram lhe impor, ele os transforma em símbolos de dignidade. E quando dizem que “nem parece homossexual”, ele responde com presença. Porque sua identidade não precisa se explicar — ela apenas existe. Firme, bonita, ritualizada.
Como um barracão fincado no chão da Bahia, feito de madeira, de tempo e de fé.
O Candomblé é uma religião afro-brasileira formada a partir do encontro entre diferentes culturas africanas trazidas para o Brasil durante o período da escravidão, especialmente das etnias iorubá (nagô), jeje (fon) e bantu. O termo "nação", dentro do Candomblé, refere-se a essas matrizes étnico-culturais, como Ketu (iorubá), Jeje (daomeana), Angola e Congo (bantu), entre outras. Embora suas raízes estejam profundamente ligadas ao continente africano, o Candomblé, como religião organizada, só existe no Brasil. Ele surgiu e se estruturou aqui, especialmente na Bahia, onde a convivência entre negros de diferentes etnias, o contato com o catolicismo e a repressão dos colonizadores resultaram em um sincretismo religioso e na adaptação dos rituais africanos à realidade brasileira. Portanto, o Candomblé é uma criação afro-brasileira, embora preserve muitos elementos, idiomas e liturgias ancestrais da África.
A conversa continuou no terreiro ensolarado, entre pausas longas e lembranças que vêm como se ainda estivessem acontecendo.
— Mas nessa época que o senhor se raspou… sua primeira mãe de santo foi essa? — pergunto, caderno no colo, gravador entre nós.
— Foi… com a mãe de santo que morreu. A primeira — responde sem pressa.
— Que se chamava?
— Maria Eliane Pereira. De Junçarí. Djina, Tawánirê.
— E o orixá dela?
— Oxóssi.
Há uma pausa. O tempo parece obedecer à cadência do terreiro, e não ao relógio.
— Depois que ela morreu, fechou o terreiro, fechou tudo… fui procurar uma pessoa que tava no lugar da vó dela.
— E o senhor passou quanto tempo com ela?
— Desde quando iniciei… até uns oito, nove anos de santo. Ela morreu num acidente de carro. Depois fui pra essa pessoa no lugar da vó. Lá terminei minhas obrigações… tô até hoje.
Ele ajeita o corpo, alisa o tecido branco que cobre o joelho.
— Tô há quarenta e cinco anos na mesma nação. Só mudei de casa: de filha pra avó.
— E que hoje seria?
— Mãe Ilza. Mam’etu Mukalé de Ilhéus.
— Qual a corrente?
— Candomblé de Angola Bantu. A mesma que me iniciou.
Puxo da memória uma lembrança infantil:
— Porque lembro que, quando vim aqui criança, as cantigas, as zuelas… eram diferentes.
Ele confirma com um aceno:
— Era.
— Se falava Oxum, Iansã... Hoje já se fala de forma mais iorubá.
— Nós tínhamos um candomblé… brasileiro — diz ele, com ênfase. — O Bantu é novo no Brasil. As casas eram místicas. Tocavam Umbanda, Ketu, Angola… Quando você começa a entender o candomblé, você começa a buscar sua verdadeira origem.
Faz uma pausa. Olha para o chão, como se ali estivesse a raiz de tudo.
— Antigamente, professor dava aula sem ser formado. Aprendia com os pais. Naquele tempo… será que já existia raiz quadrada para aqueles professores simples?
— Não tinha! — digo, quase rindo.
— Pois é. O que hoje se estuda no candomblé, que passa em sala de aula… não tinha. O estudo mudou. O candomblé também. E a gente mudou junto.
Fagner entra na conversa:
— Você sabe que existe graduação no candomblé?
— Tem — responde Pai Naldo, sem hesitar. — Eu sou graduado.
— Olha que maravilha — diz Fagner.
— Cheguei à última obrigação do candomblé. Vinte e um anos. Tenho trinta anos arreados. Depois dos vinte e um… é só aniversário de santo. A mudança veio e mudou. E a mudança também chegou no axé.
Pausa. Explicação.
Apesar do termo bantu remontar a um grande grupo étnico-linguístico africano, a estrutura religiosa conhecida hoje como Candomblé Bantu — ou Candomblé de Angola — é produto brasileiro. Sua organização como nação distinta, com fundamentos próprios, se consolidou no século XX. Até então, muitos terreiros misturavam práticas de Ketu, Jeje e Angola, num candomblé mestiço, como define Pai Naldo.
É nesse contexto que se entende a fala dele: “O Bantu é novo”. Novo como identidade estruturada. Não como presença histórica. Ele mesmo é parte desse processo de resgate.
— Às vezes — diz, olhando firme — na nossa nação, hoje, não se pode mais gritar “ôra ei ei Oxum”. Antes gritava. Só que a gente descobriu que tava errado depois.
— Então não é questão de corrente… é questão de certo e errado? — pergunto.
— A gente tenta consertar — responde. — Hoje a gente grita “Penbelê, Dandalunda”. Eu fui um dos primeiros a mudar.
Com isso, o discurso de Pai Naldo deixa de ser só pessoal. Passa a apontar um movimento coletivo.
— Comecei a ser convidado pra palestras, congressos. Lá encontrei gente mais velha. Começamos a buscar a verdadeira…
— ...se aprofundando no estudo? — completa Fagner.
— Isso. É como ser indígena… e não cultuar sua origem indígena. Entendeu?
Ele se ajeita na cadeira. Parece pesar cada palavra.
— Eu sei onde tá certo e onde tá errado. Mas quando eu falo com alguém daqui, de Ipiaú, tem gente que diz: “Errado? Sempre foi ‘ôra ei ei Oxum’ e sempre vai ser”.
O problema, explica, não é a frase em si — usada no Candomblé Ketu, de origem iorubá — mas o uso fora de contexto. No Bantu, Oxum é Dandalunda. As rezas são em kikongo ou kimbundu. Cada nação com seu fundamento.
Então me arrisco numa pergunta mais íntima:
— Quando nasceu Oxumarê na sua vida?
— Eu fui feito de Oxóssi. Borizado. Borí pra Oxóssi. Um dia, uma mãe de santo olhou pra mim e disse: “Você não é de Oxóssi. Você é de Oxumarê.”
Na época, Oxumarê era um santo raro, pouco cultuado.
— Levei noventa dias pra falar com minha mãe de santo. A gente apanhava. Tinha medo. Quando falei, ela ficou quarenta minutos coçando o cabelo. Aí disse: “Você não é de Oxóssi. É de Oxumarê. Mas botei Oxóssi porque é santo homem. Esse Oxumarê… faz homem virar veado. Mulher, sapatão.”
Ele não comenta. Apenas constata. Como quem carrega a memória de uma resistência.
— Ela também não conhecia esse santo. Só sabia isso pra dizer. Mas não é isso. É outro caminho. É um santo andrógeno. Como a cobra. Tem cobra que pare. Tem cobra que põe. Meu santo é a cobra. É Adam.
Ele fala de Oxumarê com a solenidade de quem respira o próprio axé. As palavras poderiam ser apenas ditas, mas são habitadas. O olhar, firme. A fala, impregnada de certeza.
“Quando eu raspei, raspei Oxumarê”, diz ele, sem titubear. “Oxumarê é tudo na minha vida. Meu pai, minha mãe, minha irmã, meu amigo. Tudo. Eu respiro esse santo.”
Perceba que não é apenas um relato de iniciação. É um reencontro com a essência. O orixá de Pai Naldo não é só divindade: é espelho, travessia e raiz. Oxumarê, a serpente que gira o mundo, é também o eixo de sua identidade.
Oxumarê, no candomblé, é figura rara — e muitas vezes incompreendida. Associado ao movimento, ao arco-íris, ao eterno ir e vir entre masculino e feminino. Ao escutar a forma como Pai Naldo se identifica com esse orixá, percebo que há ali um mergulho mais profundo. Quero saber mais.
— E o seu colo? — pergunto, atento ao vocabulário da Nação Angola, onde “colo” é o segundo Inkice que rege a cabeça do iniciado. No iorubá, esse conceito é traduzido por “orixá adjunto”.
Arrisco: — É Iansã?
A resposta vem seca, direta, sem margem para dúvida:
— Ogum.
Ponto final.
Naquele instante, uma imagem se compõe: o movimento ondulante de Oxumarê em contraste com a linha reta da espada de Ogum. O que dança, o que corta. A água e o ferro. Pai Naldo parece carregar os dois: doçura e rigidez, sutileza e decisão.
Mas há mais. Antes mesmo que eu pense em continuar a escavação, ele entrega a próxima peça:
— Iansã é meu terceiro santo.
A fala vem calma, sem perder a força. Iansã — Oyá, a senhora dos ventos, das tempestades e das transformações. Três divindades, três camadas de um mesmo homem: o fluido, o firme, o impetuoso.
“Eu sou de Oxumarê”, ele começa a repetir. Mas interrompo, atento às nações que nomeiam de forma distinta os mesmos fundamentos:
— Mas na sua nação, não se chama Oxumarê...
Ele confirma com naturalidade:
— Eu sou de Angorô. Sou de Inkoci, que é Ogum. Sou de Matamba, que é Iansã.
As palavras vêm como se recitadas de cor — e talvez sejam. Não no sentido de memorização, mas no de corpo que já decorou o próprio caminho. Ele segue:
— Agora eu te digo uma coisa: eu venho brigando... muda o nome, mas não muda nada. Tem gente que diz: “Dandalunda é Oxum.” Oxum é uma coisa, Dandalunda é outra. Mas as duas são da cachoeira. As duas são da água doce. Pode ter uma energia diferente...
Faz uma pausa. Um silêncio cheio.
— Xangô é a justiça. No Angola, no Ketu, no Jeje... Oxumarê, Becém, Frekém, Dã... tudo é cobra. É só um caminho pra aprender. Os caminhos são diferentes.
As palavras de Pai Naldo escorrem como rio que conhece bem o próprio leito. São carregadas de memória e doutrina, mas não têm rigidez — abrem margens.
Pergunto, já sem o peso das formalidades:
— O senhor acha que está errado chamar por um nome diferente? Ou depende da nação?
Ele responde com um aceno suave e uma voz agora didática, como quem já explicou isso muitas vezes, mas ainda guarda paciência:
— Cada nação chama de um nome diferente. O Jeje já chama por outro nome...
A conversa já não está no tempo presente. Flutua. Está em algum lugar entre o corpo e o sagrado, entre o passado e o destino. Então arrisco uma última pergunta:
— O primeiro que o senhor recebeu foi o caboclo?
A resposta vem rápida, definitiva:
— Não. O primeiro santo que me pegou foi Ogum.
— Quando o senhor era criança?
— Quando eu era criança — confirma.
E retoma com a precisão de quem já contou essa história mil vezes — e a viveu outras tantas:
— Quando fui me tratar da doença, o primeiro santo foi Ogum. A mãe de santo falou: “Você não é de Ogum, é de Oxóssi.” Aí burizou Oxóssi. Mas quando fui raspar, raspei o santo certo: Oxumarê.
Lembro de algo que ele dissera antes, e volto àquele ponto:
— Ah, sim! O senhor falou que as pessoas o procuravam pra se consultar...
Pai Naldo sorri com comedimento, quase cúmplice:
— Pra se consultarem.
Mais uma pausa. E então ele mergulha de volta ao início:
— Quando eu virei no orixá, que é o Nkisi novinho... o caboclo começou a me pegar logo em seguida. A mãe de santo já disse: “Vai soltar o caboclo!” Aí já soltava o caboclo.
A fala de Pai Naldo é atravessada por uma ancestralidade viva, feita de corpo e espírito. Não há exaltação gratuita, tampouco um discurso de autoafirmação vazia. O que há é o peso da experiência — e a leveza de quem já entendeu que todo santo carrega um caminho, e que todos os caminhos, no fim, levam de volta pra casa.
Os olhos vão longe, como quem busca no tempo o instante exato em que tudo começou. Ou recomeçou.
— Quem ficou famoso na minha vida, mais do que os Nkisi, os orixás, foi o caboclo. Uma referência. O povo gosta muito. O povo acha muito bonito. Acham que dança muito, que canta muito bem. E isso ficou como referência na minha vida: Pai Naldo do Caboclo Gentileiro.
Não era apenas um nome de trabalho espiritual. Era um título de nobreza. Uma entidade com corpo, canto e memória. Pai Naldo fala e, quando fala, constrói território. A palavra não é só relato, é retorno. É quando o sagrado encontra sua própria versão dos fatos.
— Eu fui... — diz, como quem se abre. Mas é interrompido. A escuta tem pressa. Quer saber de antes, do começo de tudo.
— Antes do senhor entrar nessa parte, como foi? Quando começou a andar pelo Brasil?
Nem termino a pergunta. Ele já está lá.
— De São Paulo começou a expandir! Rio, Minas, São Paulo...
Diz como quem conta um milagre. Ou vários. O tom embala a memória, e a memória dança.
— Quando... a história do exterior, uma pessoa entrou em contato comigo. Conversamos por telefone. Ele veio aqui, conheceu a casa, gostou... e mandou me buscar. E eu fui. Não fui mais porque não tenho tempo.
A naturalidade com que narra o salto do terreiro para o aeroporto revela uma vida costurada sem distinção entre o chão batido do Brasil e o calçamento europeu. Para ele, tudo é continuidade. Fé não conhece alfândega.
— Quando eu cheguei em Portugal, que eu ia passando em uma praça, duas pessoas iam passando... do tele móvel... do tele móvel — repete, sorrindo com gosto pela palavra nova.
— Eles me mostraram que me conheciam da televisão! Aí começou...
A voz embarga. Não por vaidade. Por assombro mesmo. Daqueles que só acontecem quando o mundo devolve o que você nem sabia ter doado.
— Foi um dia de muita emoção... um dos dias que mais me emocionou.
Os olhos brilham. Há lágrimas. E um espanto silencioso.
— Eu ver uma pessoa vestida com a camisa do meu caboclo...
Não era um desfile. Não era festa. Era rua. E era verdade. Aquela imagem, impressa no peito de um desconhecido, dizia mais que qualquer homenagem oficial.
— Foi nesse momento que o senhor teve a dimensão do seu nome? — pergunto, sem saber direito se a pergunta é uma dúvida ou só uma forma de respirar junto.
Ele responde com a mesma serenidade com que acende uma vela:
— Até aí eu não tinha noção...
A rua sabia. O povo sabia. E foi o povo que lhe deu esse diploma sem cerimônia, sem assinatura, mas com selo de afeto. O reconhecimento não veio com medalha — veio com camiseta.
— Eu tive tantos prêmios, tantos títulos... — diz, como quem esvazia um pouco a prateleira para dar espaço ao que importa.
— ..., mas essa naturalidade... até hoje eu não consegui falar sobre isso ainda.
Fala agora. Baixo. Rente ao chão.
O homem que guia espíritos, cura dores e inicia caminhos — não se acostuma com a força de um gesto simples. Ainda se surpreende. Ainda se emociona. Porque o que marca mesmo, o que deixa rastro, é o que vem da rua. É o respeito sem aviso, sem palanque.
— Mais de quarenta anos de santo... quantos filhos?
Ele sorri, ligeiramente encabulado.
— Segundo as pessoas... chegam a oito mil filhos de santo, iniciados...
Pausa. Como quem tenta imaginar o que seriam oito mil corpos dançando juntos.
— Mas se eu disser pra tu que eu tenho a conta exata... eu não tenho.
— Tem os borizados também, né?
— Que são tão filhos quanto os iniciados. Tem os clientes. Segundo as pessoas, eu fui a pessoa que mais... tem pai de santo com oitenta anos de santo e, segundo as pessoas, não tem a quantidade de filhos que eu tenho.
Não há vanglória. Há estatística de boca, saber popular. E uma memória que se apoia no que foi visto, dito, vivido.
— E como reunir esse tanto de filho na casa?
— Nós estamos querendo reunir um bom número... uns já morreram... outros não frequentam mais... outros viraram evangélicos. Eu respeito.
Fé, para ele, não é cerca. É caminho.
— Estamos querendo reunir esse pessoal nos meus quarenta anos de santo, no último sábado de fevereiro.
Mas sua estrada não parou no Sudeste. Nem nos limites do corpo.
— Eu fui pra Europa! Conheci Itália, conheci Portugal — capital e interior... e uma cidade maravilhosa onde tenho filhos maravilhosos: Ilha da Madeira. E de lá fui conhecer a cidade da rainha...
— Londres — completa Fagner.
— Isso! Londres.
E então ele se abre de novo. Não sobre uma cerimônia, mas sobre um gesto que, para ele, confirmou o que já desconfiava: tinha santo, sim. Tinha caminho, tinha guia.
— Um filho meu falou: “Pai Naldo, se eu pudesse, lhe levava pra Londres. O aeroporto é uma cidade. É difícil demais.” Mas eu fui. Sozinho.
E rindo com os olhos:
— Quando cheguei na fila pra embarcar, eu não sabia falar nada...
A câmera desliga. A gravação falha. A entrevista acaba por um fio.
Mas Pai Naldo continua — como sempre fez — com as palavras dele, com os passos dele, com os filhos e os caboclos que o carregam mundo afora. Porque a história dele não cabe num vídeo. Nem numa fita. Nem aqui.
Mas a gente tenta. Porque ouvir é um jeito de dançar também.
- Esse é um trecho do livro Filho de Angorô, de Thomas Leuri, que será lançado em agosto de 2025, durante o FestContas
[1] O Bairro da Seringueira é um bairro localizado na cidade de Ipiaú, no estado da Bahia
[2] Nome popular de outro bairro da cidade de Ipiaú.