Tema e método de composição
“O tema não quer dizer nada! O que interessa é o método!” GLAUBER ROCHA Por: Giorgio Ferreira Em uma de suas entrevistas, Glauber Rocha d...
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“O tema não quer dizer nada! O que interessa é o método!”GLAUBER ROCHA
Por: Giorgio Ferreira
Em uma de suas entrevistas, Glauber Rocha dispara: “o tema não quer dizer nada! O que interessa é o método!” A frase do cineasta baiano foi enunciada comentando produções audiovisuais como cinema e novela, mas ela se aplica a vários contextos: ciência, filosofia e arte em geral. Esse breve texto constitui-se como uma tentativa de exemplificar, com um caso da literatura, a afirmação do cineasta baiano.
Inicialmente, alguns esclarecimentos são cabíveis em relação ao que se entende por método. Segundo Anatolle Bailly (BAILLY, 1895), o termo método deriva do grego methodos (μέθοδος: μετά + όδός): “caminho para se chegar a um fim”. O método é, então, um meio pelo qual se obtém algo. Existe o método científico, que é o método adotado pela ciência para atingir seus fins — não confundir com ABNT, que é norma e não método. Existe também o método de ensino, que são os meios adotados pelos professores para atingirem um determinado fim, que, no caso, é o aprendizado dos discentes. Existe também o método exegético adotado pelos críticos de arte para realizarem a exegese de uma determinada obra (estilística, método estruturalista etc.). E, também, existe o método adotado pelos artistas para construírem suas obras. Nesse último caso, é comum empregar-se o termo poética (poética surrealista, poética impressionista)[1], que são programas, ou direcionamentos, para a construção de uma determinada obra. É nesse último sentido que Glauber Rocha se refere ao método quando indica que é ele o que importa, e não o tema. Ou seja, o que importa é a maneira como o artista trata aquele determinado tema, os meios que ele emprega para obter determinado fim que é o resultado final da obra.
Um belo exemplo do que diz Glauber Rocha é o conto Missa do Galo de Machado de Assis. O conto possui um tema trivial e narra o caso de um homem, hospedado na casa de um conhecido, que decide assistir à Missa do Galo; e, enquanto espera um conhecido, aguarda na sala da casa onde estava hospedado até chegar o horário de, finalmente, assistir à missa. Durante essa espera o homem conversa um pouco com a esposa do amigo. Tudo muito trivial, muito prosaico, muito comum: algo típico da poética impressionista e que viria a influenciar a poética realista nascente no Brasil. No entanto, a disposição desses elementos no conto já indica que algo muito trivial pode tornar-se motivo para excelentes obras.
Nesse método de composição empregado por Machado de Assis, o primeiro ponto a se destacar é a escolha do narrador, isto é, daquele que narrará os fatos e, portanto, imporá seu ponto de vista à narrativa. Quem narra? Quem descreve os fatos é um homem adulto, rememorando fatos de sua época de dezessete anos, os quais ele indica ainda não ter compreendido adequadamente. Esse tipo de narrador, que narra sua própria história, é chamado de narrador autodiegético. Ele se caracteriza por não saber toda a história, por oferecer um ponto de vista parcial — o seu próprio — e por analisar os sentimentos dos outros personagens a partir de sua própria impressão. Dir-se-ia que ele não narra os fatos, mas sua impressão dos fatos. Nesse sentido, as características psíquicas do narrador também importam: um ciumento tenderá a ver em tudo motivos para seus ciúmes, um avarento tenderá a ver em tudo uma ameaça ao seu patrimônio etc., e os fatos serão narrados a partir desse pano de fundo psíquico[2]. Da mesma forma, uma pessoa mais velha narrando fatos de sua juventude estará sujeita aos lapsos da memória, aos exageros típicos de quem narra fatos muito longínquos, a submeter os fatos às impressões sentimentais etc. Esse é o narrador do conto, um homem mais velho contando um feito de sua juventude. E, assim, se inicia o conto: “nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.”
Outro ponto que convém destacar é a disposição dos elementos na cena em que se passa a conversa. Um jovem de dezessete, uma mulher de trinta e que aparentemente aceitava as traições do marido e o marido que havia saído para um encontro extraconjugal. A conversa se passou durante a noite, quando todos dormiam. Uma conversa cheia de idas e vindas, silêncios, titubeios, tentativas de sempre prolongar o assunto quando ele já havia encerrado, aproximação paulatina dos corpos, rostos próximos, preocupação para não acordar as outras pessoas da casa, volume da conversa cada vez mais baixo até virar um cochicho. Todo esse contexto é narrado em detalhes pelo narrador. A riqueza de detalhes, aí, não é ao acaso: são esses detalhes que fazem o leitor imergir na cena, acompanhar o jogo presente na interação entre os dois personagens, a tensão pairando no ar. Há uma escolha aí, uma questão de método.
Além disso, os nomes dos personagens são ambíguos. Nogueira pode ser entendido como um nome qualquer da época, mas é também o nome da árvore que dá nozes, as quais costumam ser ingeridas na ceia de Natal. Ou seja, Nogueira — com toda a ambiguidade possível — era a árvore que dava as sementes que seriam ingeridas na noite de Natal. O nome Conceição, por sua vez, pode ser entendido como uma referência à Imaculada da Conceição (concepção), que remete à Maria, que concebeu Jesus, em nome do qual o Natal é celebrado; e, por isso mesmo, é também o nome da concepção, daquela que recebe a semente em seu ventre e concebe. Machado de Assis e suas ambiguidades… O conto se encerra com Nogueira narrando que, ao chegar à missa, não conseguiu tirar da mente o que havia se passado entre ele e Conceição, embora ele não diga exatamente o quê… Meses depois o marido de Conceição morre de apoplexia (AVC, derrame) e ela se casa novamente com alguém próximo dele, seu escrivão. Novamente, a dúvida brota: Conceição tinha o hábito de se relacionar às escondidas com pessoas próximas?
Mais uma dúvida e essa se refere ao título. A Missa do Galo possui esse nome porque, segundo a lenda, um galo havia cantado à meia-noite para anunciar a chegada de Jesus, advindo da Imaculada Concepção. Em sua narrativa, Nogueira cita que, após sair da casa e despedir-se de Conceição, já durante a missa, a figura da mulher havia se interposto mais de uma vez entre ele e o padre. O conto trata de uma missa, qual seja, a Missa do Galo. Mas que missa foi essa, exatamente? Foi a missa rezada na igreja, ou a “missa” ocorrida na penumbra entre Nogueira e Conceição e que constantemente se interpusera entre Nogueira e o padre? Qual é o homem que nasce após essa missa? Seria Jesus, ou Nogueira que se tornou homem após aquele encontro? Mais uma das ambiguidades machadianas… É de se destacar que a ambiguidade nas obras de Machado de Assis nunca é ao caso, ela é sempre milimetricamente calculada, ou seja, ela é usada como parte de um método rigoroso de construção.
Tudo contribui para a dúvida, para a percepção de que algo paira no ar sem nunca se dar completamente à mostra. Nogueira não estaria exagerando em sua narrativa? Afinal, trata-se de algo ocorrido há muito tempo e que ele não se lembra direito, e que nunca pôde compreender totalmente. Essa conversa entre um rapazote de dezessete anos e uma mulher de trinta não teria sido mal compreendida pelo rapaz? Ele mesmo admite essa incompreensão. No entanto, resta a dúvida: em que sentido ela foi mal compreendida? Foi um flerte mal compreendido? Ou teria sido um gesto de educação mal compreendido? Ou algo meramente casual que a imaginação juvenil exagerou? Mas, se ele não compreendeu, por que, afinal, estaria narrando? Ele estaria contando toda a história ou estaria omitindo partes? Seria uma maneira velada de vangloriar-se de suas aventuras adolescentes? Como foi indicado, tudo nessa obra é metodicamente pensado para causar a dúvida e ambiguidade, desde e a escolha do narrador, passando pelos fatos narrados, o estilo da narrativa, a ocasião em que os fatos se deram, os nomes dos personagens e o título.
Como foi dito, o que interessa não é tanto o tema da Missa do Galo, ou do adultério — ou não — de Conceição. O que interessa, nessa obra, é a maneira como o autor insere o leitor na cena, como planta a dúvida no próprio leitor, como a ambiguidade é usada não apenas para causar um mistério e um suspense no leitor, mas, sobretudo, imergi-lo em um ambiente de dúvidas, tal qual estaria um adolescente diante de uma mulher durante uma conversa tarde da noite, na penumbra, cuidando para que os outros não acordem, em cochicho e com o rosto próximo um do outro. Estaria essa mulher apenas sendo educada? Haveria um flerte? A própria narrativa cria a ambientação do flerte, da tensão diante do acontecimento, do antegozo, da véspera, do estar muito próximo de desencadear algo relevante, tal qual uma Missa do Galo. Se o leitor se sente diante de tais percepções ao ler a obra, não é apenas pela “inspiração” de Machado, nem pelo tema em si, mas em razão do método por meio do qual o tema foi trabalhado. Nesse sentido, o trabalho do escritor é semelhante ao do artesão, do artífice, daquele que por meio de uma via artificial — isto é, dos artifícios — cria no leitor uma percepção, confere forma a um determinado sentimento, faz vir à tona uma determinada zona de intensidade que se dá por entre as coisas. É nesse sentido que um artista é um poeta, isto é, pratica a poiesis, ou seja, confere forma a sentimentos, percepções e intensidades vagas, fazem com que elas passem do não ser ao ser, tenham existência. E, nesse trabalho de dar forma a intensidades vagas, o tema pode ser qualquer um; o método, não. Ou, como diria Glauber Rocha: “O tema não quer dizer nada! O que interessa é o método!”
REFERÊNCIAS:
BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-Français. s/l: Hachete, 1895.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Machado de Assis Completo. Brasil ePub, 2012. Livro eletrônico.
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
[1] O termo poética deriva do grego poiesis, que significa fazer com que algo passe do não-ser ao ser, isto é, que algo passe a existir. Poiesis, designa, assim, criação. Uma poética é um método de criação – não confundir com estética, que é um ramo da filosofia (cf. PAREYSON, 2001, p. 15-19).
[2] Nesse sentido, o narrador autodiegético é o oposto do narrador onisciente. Esse último caracteriza-se justamente por conhecer tudo o que se passa na obra, desde os acontecimentos ocorridos quando o protagonista não estava presente até os reais pensamentos e sentimentos dos personagens envolvidos. Por exemplo, a dúvida acerca do comportamento da personagem Capitu, em Dom Casmurro, jamais seria possível se o narrador fosse onisciente.