A menina Sissiu

Era 1981 e o sol não apenas brilhava — ele cintilava sobre as águas do Rio de Contas como se nelas estivessem guardados diamantes dormindo....



Era 1981 e o sol não apenas brilhava — ele cintilava sobre as águas do Rio de Contas como se nelas estivessem guardados diamantes dormindo. A menina Sissiu, com a astúcia que só têm as crianças que já viram demais, puxou a corda da canoa. O dono, um certo Celestino, estava longe. E ela, aproveitando o mundo temporariamente sem senhores, sentou-se. Pegou o remo. Era livre, tão livre quanto a própria canoa que deslizava sem rumo, sem medo, sem ter de pedir licença.

O rio refletia o céu como um espelho ingênuo. As nuvens, em sua maciez infantil, se desfaziam nas ondulações provocadas pela dança da embarcação. Mas a liberdade tem seu preço: Sissiu não sabia voltar. E quando se dá conta da margem perdida, é que se inicia o temor.

O grito veio como um trovão seco:

— Sissiu! Volta agora! — era a voz da mãe, Nana, com a fúria na mão em forma de sandália.

Ela tentou voltar. Tentou mesmo. O remo era pesado, o corpo pequeno, e a vergonha maior que tudo. Quando finalmente pôde pisar em terra, Nana já estava ali, braço estendido, dedo apontado, coração impaciente:

— De novo com essas ideias, menina?!

— Seu Celestino, eu ia devolver! O senhor sabe! Por que conta sempre pra ela?!

— Porque ele se preocupa
, respondeu Nana, enquanto apertava o braço da filha com mais firmeza do que dor. E a mandou de volta para casa, contrariada como só as meninas vivas sabem ser.

Lá havia uma casa cheia: oito filhos no total, sete deles do mesmo pai. E havia Sissiu, a bastarda — como os filhos do padrasto costumavam lembrá-la, mesmo quando não havia motivo. A mais velha, Dulce, morava longe. Restava a Sissiu o ofício silencioso de cuidar dos outros. Tinha dez anos, mas seus gestos já sabiam das coisas que só os adultos conhecem: panela no fogo, irmão no colo, dor sem nome.

Ainda assim, ela brincava. Brincava com uma urgência. Corria, dançava, nadava. Brigava também. Era um gerúndio vivo na Avenida São Salvador: vivendo, escapando, ousando. Entrava em fazendas alheias atrás de frutas, fugia nas carroças, ria alto. Não sabia que era o riso o que primeiro o mundo tenta arrancar das meninas.

Mas os anos passam como uma lâmina quieta. Aos treze, o corpo de Sissiu passou a chamar atenção que não pediu. O banho no rio, que era rito de infância, virou espetáculo para olhos de homens. E entre eles, estavam Toni e Eliseu — irmãos. Toni, um homem que ainda seria seu marido. Eliseu, um vulto de promessas vazias.

Se fosse só o olhar torto do mundo, talvez ela tivesse suportado. Mas um dia, o perigo se instalou em casa. O padrasto, aquele a quem chamava de pai, começou a olhá-la de forma diferente. O que se faz quando o lar se torna armadilha? Foge-se. E Sissiu fugiu. Deixou mãe, irmãos, casa. Deixou até o medo e foi para Ilhéus, para viver com a irmã Dulce — a quem devia o nome, mas não o afeto.

— Essa é minha irmã Sissiu.

Assim foi apresentada. Mas o título não garantia acolhimento.

Ali, Sissiu era hóspede indesejada, forasteira. Só comia quando autorizada. Comia pouco. Às vezes, chorava escondido — e era chamada de dramática. Fugiu outra vez. Pegou um ônibus, qualquer um. Começou a trabalhar como babá. E como as folhas que o vento leva, foi parar sob o teto de uma família que não era dela: um homem, sua esposa, duas filhas, e Zeca — um outro deslocado como ela. Não havia muito afeto, mas havia comida e estudo. E havia também vigilância. Sissiu crescia sob as frestas dos olhos de quem não a reconhecia.

Foi nessa época que reencontrou Toni. Ele tinha 24, ela mal chegara aos 14. Namoraram. Separaram-se. Voltaram. Casaram-se. Com 18 anos, Sissiu achava que estava livre. Mas o casamento, ela descobriu, era apenas outra forma de prisão. Ainda assim, era um longe. Um longe da casa da mãe, da irmã, das vozes que diziam “você nos deve tudo”.

Mas ela sabia. Sabia no fundo do seu ser: não devia nada a ninguém. Tudo o que possuía — dignidade, coragem, sabedoria — foi ela quem construiu. Fugindo. Cuidando. Trabalhando. Suportando. Amando quando possível. E principalmente, criando suas quatro filhas com o desejo silencioso de que nenhuma delas precisasse fugir. Que pudessem crescer como árvores firmes, de raízes profundas, frutíferas de alegria.

E só por isso, talvez — só por isso — que tudo o que passou tenha feito algum sentido.

Por: Ana Cláudia Santos Cardoso

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